A Causa das Crónicas
Chegámos a casa de Miguel Esteves Cardoso, no Estoril, a dois passos do Casino, com o apoio de um mapa sacado do Google Earth – cortesia do representante da editora Assírio & Alvim, que acaba de publicar A Minha Andorinha, o seu novo volume de crónicas, sucessor de Explicações de Português (2001). Depois de vários dias de intempérie, a tarde estava extraordinariamente azul e amena, uma espécie de intrusão primaveril no Outono, como que a provar a tese várias vezes repetida por MEC nas suas crónicas: a de que temos um clima mais do que perfeito, pelo qual não sabemos estar gratos.
À entrada do apartamento, uma pilha de números antigos de revistas americanas – Saveur, Vogue, Vanity Fair – que os visitantes podem levar à saída. O Miguel recebe-nos na sua biblioteca caótica, o esconderijo onde tem passado a maior parte do tempo, nestes últimos anos de retiro mediático, a ler, a escrever e a navegar furiosamente pela Internet, entre blogues, sites de gadgets e lojas virtuais de música mp3.
Em cima da mesa, à nossa frente, várias garrafas. Experimentamos o panettone com moscatel de Setúbal (Bacalhôa). O Miguel explica que em Itália lhe ensinaram a misturar as duas coisas na boca, o bolo e o licor, para proveito das papilas gustativas. Há também uma tablete de chocolate “de esquerda”, politicamente correcto porque a marca respeita os direitos dos agricultores e o equilíbrio ambiental, mas nem por isso – diz MEC, irónico – menos “excelente”.
Enquanto os outros gatos se dispersam pela casa, assustadiços e esquivos, o Agostinho, persa branco acinzentado, assiste à conversa com a comiseração que os felinos dedicam aos assuntos humanos.
Há cinco anos que não publicavas um livro de crónicas. Porquê um intervalo tão grande? Andaste desaparecido?
A percepção de nós próprios não é bem essa. Uma pessoa não desaparece. Mas, para os outros, é como se desaparecêssemos sempre que não estamos a lançar livros ou a fazer coisas. Lembro-me daquela pergunta recorrente...
O que é feito do MEC?
“O que é que aconteceu nestes últimos anos? Você está morto? Por onde é que você anda?” São perguntas ontologicamente engraçadas. Há muitas respostas. Estive a fazer um intervalo. Estive retirado, como o Leonard Cohen no budismo.
Um retiro sabático?
Não. Ia escrevendo as minhas crónicas e em Maio do ano passado tive um susto enorme. Fui parar ao hospital com uma coisa horrível no fígado, daquelas em que se fica à beira da morte. Isso obrigou-me a uma pausa. Tive que deixar de beber, porque bebia imenso. E recuperei. Foi só esse o hiato. Quando uma pessoa está à beira da morte, passa a ver as coisas de uma maneira um bocado diferente.
Sentiste que tinhas pisado o risco?
Sim. Eu bebia de manhã à noite, todos os dias, sempre. Não havia um momento em que não estivesse a beber, todas as bebidas que possas imaginar. Nunca ficava bêbedo, mas estava sempre a beber. Com a comida acontecia a mesma coisa. E é óbvio que o fígado se ressente...
Foste vítima do teu lado hedonista.
Não. Era outra coisa. Era a gula, era não ser capaz de parar. Era querer provar tudo, mesmo sabendo o mal que aquilo representa para o corpo. O que tem muito a ver com as drogas. Drogas legais e drogas ilegais. A cocaína, um problema do caraças que tive durante muitos anos. Problema alegre que depois se torna um problema horrível. E todas as outras drogas que possas imaginar, excepto a heroína e o haxixe. Uma espécie de gula transcendental.
E agora estás a pagar a factura.
Estou a pagar a factura, a conta do bar.
Não te arrependes?
Arrependo, claro. Então não me arrependo. Fodi a saúde toda. Arrependo-me imenso. Se tivesse tido um bocado de juízo...
Há pessoas que são muito regradas, muito certinhas, comem peixe cozido, bebem só meio copo de vinho tinto ao jantar, querem viver até aos noventa anos. E há outras pessoas que preferem viver a vida a fundo, mesmo que arrisquem morrer aos cinquenta...
Foi assim que eu vivi a minha vida.
Mas agora mudaste radicalmente. Agora também queres viver até aos noventa.
Eu devia estar morto, não é? Devia ter morrido. Mas não morri. Então deixei de fumar, estou numa espécie de limbo, por ter voltado à vida. Tenho muito mais cuidado, bebo muito menos.
Não me digas que te vais transformar num daqueles convertidos ao higienismo, com tendência para a repressão quase fascista dos prazeres de que abdicaram...
Isso não. Tenho imensas saudades de fumar, por exemplo. Mas não fumo. Porque eu fumava que nem um cavalo. Oitenta cigarrilhas por dia. A questão é que eu gosto imenso da vida. Sou muito feliz. Desde que casei, então, felicíssimo. E esta experiência da quase morte faz com que aprecies outras coisas... Ver um azul do céu, essas merdas. E os dias. Começas a apreciar a vida, a respiração, acordar bem-disposto, a água do banho. Enquanto antes eram só coisas adquiridas, livros que compravas, drogas que arranjavas, whiskeys que tinhas em casa. Os prazeres eram todos caçados por ti. Ias buscar este jornal, fazias a marguerita com a tequila, snifavas a coca, mandavas vir da Amazon Books não sei quê. Todos os teus prazeres eram coisas que tinhas comprado. Depois do susto da morte, e se todas as pessoas que têm uma experiência destas o referem por alguma razão é, depois do susto da morte os prazeres deixam de ser esses. Passa a ser o barulho de um carro a passar. O tique-tique. O estarmos aqui. Este castanho em cima do branco.
Alegrias simples.
É estares vivo, pá. Estando morto não fodes, não fumas, não bebes. De certeza. Porque eu ainda posso fumar, se me apetecer. Não fumo há um ano e tal, mas tenho ali charutos. Se quiser, fumo. Isso anima. Se me acontecer uma grande desgraça, se explodir uma bomba aqui ao lado, foda-se, vou acender um cigarro. Posso. Agora, se estiver morto, não posso. Parece um truísmo, mas é muito importante. O estar vivo... Podermos arrancar os dois para a Argélia amanhã, se nos der na veneta. Isso é muito bom.
Depois do caos, atingiste uma espécie de equilíbrio.
A arte está em tu abusares enquanto podes. Porque o corpo permite grandes abusos. É uma coisa fabulosa, o corpo. Estou a falar em geral, porque há pessoas com azares. O corpo deixa-te ser um bruto. Podes ser bruto com ele durante a juventude. Lá está, quando se é novo. Se tiveres vinte anos, podes fazer muita asneira, o corpo está tão fresquinho e tão bom, tudo a funcionar tão bem, o coração, o fígado, tudo tão mimoso, os intestinos, a vesícula, tudo perfeitinho. Mas tem que se fazer nessa altura, não podes guardar para mais tarde. Aquilo estraga-se naturalmente, mesmo sem beber.
Aos trinta e tal anos, já não se vai a tempo.
Não. Tem que ser enquanto se é novo. Há uma ciência da vida.
E tu não conseguiste gerir essa ciência?
Não, não geri nada bem, pá. Geri mal porque agora posso beber muito poucochinho. Geri mal porque gostava de beber muito mais do que bebo. Chegando aos 35, devia ter baixado um furo. Só beber à tarde. Ou só à noite. Ou só uma garrafa em vez de três.
É disso que te arrependes?
Sim. Devia ter bebido uma garrafa de vodka em vez de três. Mas de qualquer modo, importa termos um bocado de respeito pelo organismo, porque ainda há século e meio a esperança média de vida das pessoas era 34 anos. Nós não fomos criados para andar aqui mais do que quarenta anos, no máximo, tudo o resto já é esquisito. Os órgãos não foram concebidos para durar sessenta anos, ou setenta, ou oitenta. A questão agora é procurar o tal equilíbrio de que falavas. Não a cobardia extrema de dizer “já não bebo mais, quero emagrecer, vou entrar na linha”, porque isso transforma-se num pavor da morte. E então é a mesma coisa que estar morto. Se tens o fígado todo fodido e estás a beber, é claro que está mal e que era melhor que não bebesses nada. Mas se vives nesse pavor, estás tramado.
Entretanto, apesar desses problemas todos, voltaste a publicar crónicas com um ritmo semanal, no DNa.
O DNa representou uma coisa que nunca tive antes e nunca mais voltei a ter. Uma maravilha, uma coisa de sonho: poder escrever o que quisesse, como quisesse, no espaço que quisesse. Era o paraíso. E bem pago, ainda por cima. Tudo coisas que deixaram de existir na imprensa portuguesa, tal como está hoje.
Quais são as diferenças entre o MEC actual e o MEC que há precisamente duas décadas editou A Causa das Coisas?
Agora tenho cinquenta anos. Quando comecei a escrever nos jornais, tinha vinte e tal. Eu acho que o escritor tem que ser verdadeiro, tem que transmitir aquilo que é. Agora sou um velho. Pior, estou naquela idade complicada em que já se deixou de ser jovem mas ainda não se é suficientemente velho.
Muitas pessoas insistem em dizer: “o MEC acabou”. Isso incomoda-te?
Não me incomoda absolutamente nada. Há uma determinante biológica na escrita. E as crónicas que publiquei quando era novo eram isso mesmo: as crónicas de um homem novo. Eu só sei que nessa altura, quando escrevia, tinha uma necessidade enorme de descrever situações e de contar coisas. Uma urgência. E agora já não tenho, já não tenho há muito tempo. Agora reflicto, penso muito. Só depois vou escrever. Dantes, estava perpetuamente indignado, sempre numa ânsia.
De certa forma vieste desbravar o caminho para quem veio depois...
Havia tanta coisa que estava errada na maneira de escrever, tanta coisa. E havia também uma certa ditadura de esquerda. Ditadura entre aspas, entenda-se. Uma maneira de olhar para as coisas e para a cultura que era muito formal, muito académica no mau sentido – académica no sentido de Academia das Ciências e Academia das Letras. Não se podia brincar, não se podia ser ligeiro.
O que só te incitava ainda mais a partires a loiça toda.
Sim. Naquela época, tu tinhas que ter inimigos. Tinhas que ser diferente. E eu consegui ser diferente. Porque, a verdade é essa, era fácil ser diferente.
Mais fácil do que é hoje?
Muito mais. Qualquer pessoa com o mínimo de talento, se estivesse no meu lugar naquela altura, teria feito o que eu fiz. Isto se não esquecermos um aspecto importantíssimo: o facto de já ser doutorado quando comecei a escrever na imprensa. Podia ter só 25 anos e andar de sapatos de ténis, mas era doutorado. As pessoas diziam: “Ah, é um sociólogo, professor doutor não sei quê...” Sem essa caução, não me safava. A minha defesa foi ser o gajo que tinha estudado em Inglaterra, o gajo que tinha lido como o caraças.
Era também contra essas mesuras, esses salamaleques, que tu escrevias.
Sim. Estava contra, mas com muita ternura. Quando digo que tive muitos inimigos, é mentira. Eu fui acarinhadíssimo, não me posso queixar. Digo inimigos no sentido virtual, como as crianças que têm amigos imaginários. E mesmo aquela coisa do “senhor doutor não sei quê”, a verdade é que eu acho graça a isso. Portanto não estava propriamente a denunciar... É uma denúncia, sim, mas uma denúncia amorosa.
Essa ambivalência é uma constante nos teus textos. Mesmo quando crucificas Portugal, vê-se que amas profundamente o rectângulo que nos coube em sorte.
Como tu amas, pá. Como todos os portugueses amam, acho eu. O que mostra o amor é o falar de. Obsessivamente. Alguém diz: “Não gosto de grelos, não gosto de grelos, não gosto de grelos.” Todo o dia a falar de grelos... Hmmm, há qualquer coisa ali com os grelos.
Nas crónicas que reuniste em A Minha Andorinha, alguns dos mais clássicos defeitos dos portugueses acabam por se transformar em virtudes: a procrastinação, a inveja, a desconfiança, a preguiça, o orgulho, a mania de conceber projectos impossíveis de concretizar, etc.
É como com o corpo da mulher que nós amamos. Ao fim de dois anos de observação atenta, descobres uma linha qualquer em que não tinhas reparado e não é o defeito que tu vês, mas uma coisa bela que tu encontraste, uma coisa nova. Ofusca-te e não vês o defeito. É um bocado isso o que acontece quando me ponho a analisar Portugal e os portugueses.
A mim, parece-me que o efeito de novidade da tua escrita nos anos 80 também se ficou a dever à ausência, por cá, de uma tradição anglófona e anglófila. Concordas?
Isso foi outra grande sorte que eu tive. Tive muitas sortes. A sorte académica e essa sorte imensa. Hoje em dia toda a gente percebe inglês, o que é uma coisa maravilhosa. Na altura quase ninguém percebia. Mesmo entre as pessoas cultas.
O sentido de humor, o wit, também era uma coisa completamente nova, não era?
Sim. E eu aproveitei a minha própria dificuldade de falar e escrever em português, porque a minha língua materna é o inglês, só aos cinco ou seis anos é que comecei a ter aulas de português. A minha incompetência linguística, mas gramaticalmente correcta, fazia com que parecessem inovadoras certas formas que são tipicamente inglesas.
Surgiam como liberdades criativas...
Pois. Mas a liberdade criativa é uma coisa mais portuguesa. A nossa língua permite mais jogos e brincadeiras, o inglês é mais rígido.
Quando atravessaste a tal fase complicada, há ano e meio, passou-te pela cabeça qualquer coisa do tipo: “se eu me for daqui, pelo menos sei que deixo uma obra”?
Passou-me pela cabeça, sim. E isto porque sempre tive muita pressa. No princípio, era muito ganancioso, escrevia em seis ou sete sítios ao mesmo tempo, trabalhava que me desunhava. Era muito rápido e muito precoce. Sempre fui muito precoce. A estudar. Na vida em geral. A ter filhos. Em tudo.
Disseste que já não tens a urgência dos vinte anos. É mais difícil para ti escrever uma crónica hoje do que era nessa altura?
Muito mais difícil. Porque hoje digo “vou escrever sobre a saudade” e já escrevi. “Vou escrever sobre os nomes das terras” e já escrevi. “Vou fazer não sei quê” e já escrevi. Tenho que escarafunchar imenso para encontrar qualquer coisa de que ainda não tenha falado.
E a disciplina imposta pela crónica semanal? Custa-te cumprir deadlines?
O que me custa cada vez mais é não ter espaço. Ser obrigado a escrever coisas curtas. Vai contra a minha natureza. Gostava muito de ser lapidar, mas não consigo.
A tua prosa é feita de acumulações, atalhos, derivas.
É uma prosa espalhada, uma prosa gorda.
E por isso precisa de espaço.
Precisa. Precisa de espaço para seguir os caminhos todos. “Eh pá, isto faz-me lembrar aquilo” e “aquilo” sugere-me mais não sei o quê. E eu tenho que ir atrás dessa memória, juntando material para fazer a teia. Gosto de uma crónica que comece e se vá abrindo cada vez mais para depois, mesmo no fim, com a pressa, “vê lá, tens que acabar no próximo parágrafo”, de repente consiga dar sentido aos fios todos que se levantaram.
Quando começas a escrever, tens um plano concreto do que será a crónica?
Tenho. Passo pelo menos um dia inteiro a pensar no que vou dizer, mas a pensar mesmo, entre dicionários e apontamentos. Muitos apontamentos. Um moleskine dá-me só para duas crónicas. E aproveito apenas uma pequeníssima percentagem dessas ideias. Uma vez em cada mil, quando faço menos apontamentos, consigo pôr tudo o que pensei dentro da crónica. Mas essas não são as que ficam melhor.
Por vezes sais-te com pequenos achados, como aquele de transformares substantivos (por exemplo, “lazer” ou “lar”) em verbos, com as respectivas conjugações.
Se tu pensares na palavra “lazer” durante oito horas, mais tarde ou mais cedo isso acaba por acontecer. Estás tão aflito, por andares às voltas com uma ideia não sei quanto tempo, que as fantasias se materializam naturalmente.
É óbvio que te preocupas muito com o estilo e essa preocupação pode ser um martírio, como explicava o Flaubert.
É um martírio, sim. Toda a gente que escreve crónicas para jornais aprende a aceitar o facto de que muitas vezes o que se entrega é uma merda.
Tens algum mecanismo de auto-avaliação para dizer “isto não presta”?
Sim, sim. Toda a gente tem. Mesmo no seu auge, uma pessoa entrega, no máximo dos máximos, uma crónica boa, sabendo que a seguinte vai ser uma merda, e a seguinte também, e a seguinte também. Ou seja, uma crónica boa em cada quatro. Estou a falar a sério. Já cheguei a pensar que a sequência média era: crónica boa, merda, crónica boa, merda. Mas não é. E se por acaso fizeres duas crónica boas, intervaladas com uma de merda, logo a seguir tens merda, merda, merda, merda, merda.
Após uma primeira vaga de influência na imprensa, nos últimos tempos inspiraste muita gente que escreve na blogosfera. Quase todos os melhores bloggers portugueses que estão na casa dos trinta anos se reclamam, de uma maneira ou de outra, herdeiros do Miguel Esteves Cardoso. Como se houvesse de facto uma geração MEC.
Isso é lindo, comovente. Há blogues fabulosos. Muitíssimo bem escritos. E tens pelo menos uns trinta com um nível francamente superior ao da nossa imprensa. Conheço os blogues americanos e os ingleses, mas acho os portugueses os melhores de todos, os mais bem escritos, os mais bonitos, de longe os mais poéticos.
Muitos desses bloggers são pessoas que na adolescência se fascinaram com o projecto d’O Independente, que aprenderam a gostar de jornais com O Independente. Como é que viveste o fim anunciado de um projecto que ajudaste a criar?
Já tinha vivido antes. A verdadeira morte d’O Independente aconteceu há muito, muito tempo.
Estava em coma.
Quem matou O Independente fui eu e o Paulo Portas. Quem tornou impossível a continuação daquilo foram as pessoas que fugiram. Os que abandonaram o barco. Acho hipócrita dizer que foi uma grande tragédia quando ninguém impedia as pessoas que lá estavam, entre as quais eu, de continuarem o projecto.
O facto de escreveres novamente no Expresso, que foi onde começaste a sério, teve algum aspecto simbólico para ti? É óbvio que as circunstâncias são diferentes, o jornal é diferente, o espaço em que escreves é diferente.
Sim, o jornal é diferente. Mas a maior parte das pessoas continuam lá.
Sentiste que foi uma espécie de regresso?
Sim, porra, claro que foi. Ainda por cima eles perdoaram-me. Foram impecáveis ao deixar-me voltar, porque eu fui-lhes infiel de várias maneiras. Sobretudo ao fazer O Independente. Embora tivesse saído sem conflitos. Sempre me trataram muito bem.
Achas que há espaço, hoje, para um jornal que represente o que o Indy representou nos anos 90?
Porque não? Tem é que ser na Internet. Um jornal exclusivamente web e gratuito, mas um jornal a sério.
Já não te sentes com energia para tomares a iniciativa?
Há uma idade para tudo. Eu já fiz o meu jornal. Eu já fiz a minha revista.
E fizeste os teus romances. Mas desde 1996 que não publicas ficção. É um capítulo encerrado ou apenas uma área da tua escrita que está suspensa?
Está suspensa. Tenho um romance bloqueado, enorme, que estou a reescrever. E tenho outros já prontos, inéditos.
Por que é que não publicas esses?
Porque o próximo romance tem que ser mesmo muito bom, tem que ser a sério.
Certos críticos colocaram algumas reservas à tua ficção. Isso pesa alguma coisa?
Nada. Eu sou um escritor. Escrevo de tudo, da publicidade aos fados. Orgulho-me disso. Orgulho-me de poder escrever um recado à empregada em bom português.
Há alguma crónica que tenhas adiado porque ainda não surgiu o momento certo para a escrever?
Então não? As crónicas da vida que me falta. A crónica da velhice ou da imobilidade, do já não poder mexer-me. Todas as crónicas até à crónica de estar à boca da morte. As crónicas de qualquer pessoa devem ter a ver com o tempo da vida. Eu estou sempre a falar nisto. É muito importante ter-se 25 anos quando se tem 25 anos. E ter cinco quando se tem cinco. E ser velho quando se é velho.
Como é que imaginas essa velhice?
Como um tempo de sabedoria. Uma sabedoria natural que tu acumulas sem te dares conta. Vais perdendo memórias, mas isso não é tão grave assim. Porque o fundamental não esqueces. As configurações do prazer, da culpa.
Essa sabedoria traz humildade?
Traz uma humildade absoluta que é a gratidão. A verdadeira humildade é uma gratidão. No sentido de “olha lá a sorte que eu tive”. Voltamos ao que disse lá atrás. Saber apreciar isto de estar vivo. Os objectos pequenos, o cheiro das coisas, a maneira dos gatos entrarem em casa. A riqueza do mundo, sem precisares de comprar seja o que for. Por exemplo, no outro dia descobri uma quinta, a Quinta da Ribeira, onde vendem pão embrulhado em cobertores, óptimo. Ainda não tinham apanhado as laranjas, porque é muito cedo. Mas estava lá o pomar. E eu atrevi-me e arranquei duas laranjas, mesmo quando ia a passar um padre que olhou para o chão, como quem perdoa, porque aquilo pertence ao seminário ou ao patriarcado, parece uma coisa do século XIX. Roubei essas laranjas, as primeiras laranjas do ano, sacadas por mim, com as folhas e tudo, mais a rama. Estive uma hora e meia à volta das laranjas, com a Maria João. Partimos os gomos e revisitámos todas as maneiras de comer laranjas. O prazer, o cheiro, aquilo tudo esmigalhado, o óleo a marcar os nossos braços. A comparação com outras laranjas. É uma coisa que só se pode apreciar aos cinquenta anos. Se tu fizeres isso agora, não chegas lá da mesma maneira. Falta-te a idade.
Há também o gozo da transgressão.
Claro. O prazer máximo daquilo esteve no facto de as laranjas serem roubadas. Eu sabia muito bem que estava a entrar numa propriedade privada mas disse: “olha, vou apanhar à mesma”. E o padre deve ter pensado para o seus botões: “coitado, olha-me aquele coxo a apanhar laranjas, o melhor é perdoá-lo”. Era um padre para aí com vinte anos, um padre lá do seminário. Olhou para o chão como no filme do Bresson. Ele a olhar para o chão e eu a roubar as laranjas. A fruta roubada é uma coisa de putos. Tem um sabor maravilhoso. Com a Internet é a mesma coisa: a euforia que dá fazer downloads proibidos... Lembro-me que me fartava de roubar livros com o meu irmão. Vestíamos uns casacos enormes, andávamos de canadiana em pleno Agosto, para meter mais livros nos bolsos. E o que não faltava lá em casa eram livros.
[Entrevista publicada na edição de 15 de Dezembro do suplemento 6.ª do Diário de Notícias]