ENTREVISTA A NUNO MARKL:
Nuno Markl é actualmente uma referência incontornável no panorama humorístico nacional. Apesar do seu trabalho destacado na rádio, mais propriamente no programa O Homem Que Mordeu O Cão, é também um fervoroso cinéfilo.É sob esta condição que o Royale With Cheese tem o prazer e a honra de publicar uma entrevista com Nuno Markl.
Royale With Cheese? A sua exposição mediática revelou desde logo uma faceta sua muito forte: a de cinéfilo. É apenas um hobby, ou é uma paixão para ter em conta num futuro próximo? É sabido que, em tempos, propôs mesmo uma parceria como guionista, ao Sá Leão.
Nuno Markl- Acima de tudo é um ?hobby?. Eu vou alimentando o sonho de, algum dia, escrever o argumento de um filme, mas temos de ser realistas: isto é Portugal. Digamos que não é das coisas mais fáceis de conseguir, fazer uma longa-metragem e estreá-la. Por isso, não tenho nunca as minhas expectativas muito elevadas, mas também não baixo os braços. Vou arrumando as minhas ideias e esboços numa pastinha do meu fiel iMac, e um dia logo se vê. Quanto à história com o Sá Leão, acho que há muita gente que acha que sou eu a inventar, mas a verdade é que, numa vez que fui às ?Noites Marcianas? da SIC, propus mesmo ao tipo escrever um filme pornográfico para ele produzir. A minha ideia era criar o primeiro filme pornográfico português com história e com genuínas inquietações existenciais. Acho que ele não levou a sério. E entretanto também deixou de fazer pornografia, por isso...
RWC? Se lhe dessem a possibilidade de realizar ?O? seu filme, com recursos ilimitados, o que iríamos ter ocasião de ver nas salas de cinema?
NM- Neste momento, apetecia-me fazer um falso documentário na onda das coisas que o Christopher Guest faz. Uma coisa muito ?This is Spinal Tap?. Este país é riquíssimo em fenómenos que mereciam uma abordagem assim. Tenho algumas ideias para isso. Pode ser que um dia aconteça. Vou confessar o meu projecto-fetiche: adorava pegar na série Zé Gato e fazer um "Zé Gato: The Movie"! A sério. Os americanos pegam nas séries de televisão clássicas deles, como "Os Anjos de Charlie" ou o "Starsky & Hutch" e transformam-nos em ?blockbusters?. Eu acho que o nosso Zé Gato dava um excelente ?blockbuster? nacional. E outro dia em conversa com o Rui Pedro Tendinha até chegámos à conclusão que o Marco Horácio dava um excelente Zé Gato contemporâneo!
RWC? O cinema internacional parece atravessar uma crise de imaginação geral. A grande maioria dos filmes que nos chegam aos escaparates são, na generalidade, remakes, sequelas, prequelas e adaptações de jogos de computador e de banda-desenhada. Que comentário tem a fazer acerca desta situação?
NM- Não sei se há assim uma crise de imaginação tão grande... Acho, sinceramente, que as coisas já estiveram pior. Veja-se os grandes filmes que estrearam este ano: "O Despertar da Mente", do Michel Gondry; o "American Splendor", "A Vila", do Shyamalan, o "Big Fish", do Tim Burton... É claro que continua a haver muitos "Van Helsings" mas, por exemplo, e pegando nas adaptações de super-heróis a BD, tivemos o excelente "Homem-Aranha 2", onde eu vi, como nunca, o Sam Raimi fazer uso, num filme de grande orçamento, da imaginação delirante dos seus primeiros filmes de série B, como a trilogia "Evil Dead". Como fã de banda desenhada, discordo que se inclua as adaptações de BD entre as eventuais provas de que Hollywood está em crise. Se se adaptam romances, não vejo por que se deva deixar de adaptar obras de BD a cinema. E estou com grande expectativa para ver o que o Paul Greengrass vai fazer do "Watchmen". Aliás, o Paul Greengrass protagonizou uma das provas de que o cinema comercial americano ainda tem surpresas na manga: eu achei que o trabalho dele no Supremacia foi magnífico. A ideia de filmar um ?blockbuster? de acção inteiramente com ?câmara ao ombro? é um achado.
RWC? Esta situação tem-se traduzido numa crescente falange de heróis e personagens de culto, tanto de videojogos, como de BD?s, que têm sido arruinados na tela. Na sua opinião, quais foram as melhores adaptações até à data, dentro deste campo?
NM- Como já disse, acho os dois "Homem-Aranha" do Raimi adaptações muito bem feitas. Sobretudo o segundo filme. Num registo mais profundo e sério, adoro o que o Tim Burton fez nos dois primeiros "Batman". Mas a melhor adaptação de sempre de uma BD a cinema, para mim, é bem capaz de ser o "American Splendor", que estreou este ano. Está lá todo o espírito da obra do Harvey Pekar, sem deixar de ser cinema e do mais imaginativo e estimulante.
RWC? O cinema português assiste actualmente a uma agitação fora do comum, quer nas produções independentes, quer nos novos actores que começam a despontar. O que acha das novas promessas do cinema português, quer na área da realização, quer na da interpretação?
NM- Tem sido uma luta tremenda, conseguir fazer filmes que cheguem ao público e que não sejam produtos ?pimba?, mas acho que ainda falta um equilíbrio. Há nomes em que eu aposto muito no que toca a uma renovação do cinema português e um deles é o Tiago Guedes. Pelo que tenho sabido do novo filme dele, eu acho que pode vir a ser uma grande e boa surpresa no cinema nacional. Mas de um modo geral, este país tem funcionado muito à base do 8 ou 80, salvo raras excepções: ou se fazem filmes ultra-herméticos ou se fazem coisas descaradamente comercialonas como o "Portugal S.A.". Nunca me hei-de esquecer da maneira como esse filme foi promovido: ?SEXO! POLÍTICA! ESCÂNDALO!?. O que era aquilo? Foi uma maneira muito saloia de promover um filme. Recentemente, admirei muito o espírito de iniciativa do Filipe Melo para que o seu pequeno filme de zombies ficasse feito, o "I?ll See You In My Dreams". Acho que o futuro de parte do cinema português passa por estas pessoas. Não defendo que deixem de existir os filmes mais herméticos e difíceis. Acho estimulante que existam e que sejam vistos. Penso é que não deveriam constituir a maior fatia da produção nacional de cinema.
RWC? É também do conhecimento geral que a sua DVDteca é de larga escala. Nunca pensou em recorrer à pirataria (se é que não o faz já), uma vez que pode vir a correr o risco de ser expulso de casa, por parte da sua mulher?
NM- Nunca fui pirata no que toca aos filmes! Confesso que já saquei umas musiquinhas da Internet (só coisas raras!), mas faz-me confusão a popularidade da pirataria de filmes, naquelas cópias ranhosas feitas por uns imbecis que levam câmaras de video para as salas de cinema. Eu falo com pessoas que só vêem cinema assim. Fico pasmado. Deixaram de ir ao cinema. Viram a esquina e compram as últimas estreias a uns tipos que andam a vender DVDs na rua. Depois vêm dizer-me que já viram o "I Robot", o "Colateral"... Eu acho que ver cinema assim não é ver cinema. Como é que conseguem ver filmes nessas condições, tudo desfocado, inaudível, a imagem incompleta, pedaços inteiros de filme a faltar? Quanto à minha colecção de DVDs é, de facto, gigantesca. A sorte é que a minha mulher também é cinéfila, embora sejam evidentes os problemas de espaço.
RWC? A sua cultura cinéfila abrange largamente, que referências? E não vale mencionar só os Monty Phyton?s.
NM- Os Monty Python fazem mais parte das minhas referências de humorista. Se bem que um dos Python, o Terry Gilliam, faz parte daquilo que eu acho que o cinema deve ser. Ele não faz concessões, faz filmes inimitáveis e impossíveis de catalogar (isto quando consegue, de facto, terminá-los, que o homem tem um azar tremendo). Mas há muitos mais: o Tim Burton, os Coen, o Scorsese, clássicos como o Sergio Leone, o Hitchcock ou o Kubrick... Muita gente.
RWC? Habituamo-nos a ver também o Nuno Markl envolvido em algumas das mais fantásticas séries da televisão portuguesa, quer por trás das câmaras, como escritor, quer como narrador (estou a referir-me, claro, ao memorável "Paraíso Filmes"). Em que projectos podemos ve-lo num futuro próximo?
NM- O país está mau para ?sitcoms?. Uma série como a "Paraíso Filmes", hoje em dia, não seria aceite em canal de televisão nenhum. Talvez só nos canais dirigidos pelo Francisco Penim, mas nunca haveria muito dinheiro para fazer as coisas. Mesmo na altura em que fizemos a "Paraíso Filmes", eu tenho a sensação de que a pessoa que aprovou o projecto, na RTP, devia estar sob o efeito de uma substância qualquer ilícita, porque a sensação que deu foi que, assim que os episódios começaram a passar, eles pensaram: ?Oh meu Deus, o que fizemos?? e por isso resolveram atirar com eles para as tantas da madrugada (e acabaram por não passar a série inteira). Neste momento ando a trabalhar num projecto que não faço a mínima ideia se vai ser aceite e se será feito, mas no qual o Francisco Penim mostrou interesse: a adaptação do meu ?cartoon? do Inimigo Público e da minha rubrica da Antena 3, "Há Vida em Markl" a uma ?sitcom? de câmara ao ombro, em tom de reportagem, um bocado como o que o Larry David faz no "Curb Your Enthusiasm". Vou passar 2005 a trabalhar nisso e em dois outros projectos de longa-metragem que não sei se darão origem a filmes ou telefilmes. É mais provável a segunda hipótese. Como já disse, filmes para cinema é sempre mais complicado de verem a luz do dia, em Portugal...
RWC ? Passemos agora, antes de terminar, a um conjunto de perguntas de resposta directa:?O? filme da sua vida? (pronto, é melhor serem os filmes da sua vida)
NM- Vou só dizer um, porque, vistas bem as coisas, é a ele que todos os meus caminhos vão dar: "Dr. Strangelove", do Stanley Kubrick.
RWC- Um actor? E uma atriz?
NM- Peter Sellers é O actor. No que toca a actrizes, tenho um certo fraquinho pela Patricia Arquette.
RWC- ?O? filme de humor? E um de terror? E um filme xunga?
NM- Humor: "A Vida de Brian". Terror: "The Haunting" (mas a versão velhinha, do Robert Wise, não aquela coisa obscena feita há uns anos pelo Jan de Bont!). Filme xunga: "Forbidden Zone", de Richard Elfman. É um delírio maravilhoso com um imaginário algures entre o Fellini e a Revista Gina.
RWC- A melhor música de um filme?
NM- No que toca aos clássicos, "Vertigo" e "North By Northwest", de Bernard Herrmann, são geniais. Bem como o "Once Upon a Time in the West", do Ennio Morricone. Mais recentemente, amo o que o Danny Elfman fez no "Eduardo Mãos-de-Tesoura" e no "Estranho Mundo de Jack".
RWC- Uma cena marcante?
NM- Aquele momento perto do fim do "Blade Runner", com o Rutger Hauer e o Harrison Ford no terraço do prédio. ?Time... to die?. Genial.
RWC- Um filme para esquecer?
NM- De vez em quando lá aparecem uns... Até mais do que ?de vez em quando?, mas eu cada vez sou mais selectivo nos filmes que vou ver ao cinema. Não tenho tempo a perder com filmes que são, previsivelmente, valentes estopadas. Mas, para dar um exemplo recente, achei o "Van Helsing" o que de pior Hollywood tem para oferecer, hoje em dia. E o mais obsceno foi a colagem aos filmes clássicos de monstros da Universal. A Universal reeditou os seus clássicos de monstros em DVDs com capas com a estética dos posters do Van Helsing e com uns documentários promocionais do Van Helsing lá metidos a martelo.
RWC- Já chorou por causa de um filme? (quer pelos bons, quer pelos maus motivos?)
NM- Chorar só chorei em filmes por bons motivos. Às vezes acontece. Pelo menos o famoso ?nó na garganta?. Aconteceu recentemente com o "Finding Neverland", que vi em Londres. O filme não é uma obra-prima, mas é muito tocante na sua simplicidade.
RWC- Muito obrigado pelo tempo dispendido e felicidades para o futuro e para os seus projectos.